A tendência humana a reclamar e criticar o próximo não é um fenômeno novo. Embora muitas vezes, em nossa rotina moderna, essa prática se disfarce sob o manto de “crítica construtiva” ou “desabafo”, o ato de reclamar de outros e das circunstâncias tem raízes profundas na história da humanidade. Desde os textos bíblicos até os mais recentes estudos de psicologia e sociologia, podemos traçar uma linha do tempo que mostra como a reclamação, frequentemente aliada à falta de ação concreta, foi interpretada, condenada ou analisada ao longo dos séculos.
NOS PRIMÓRDIOS: A BÍBLIA HEBRAICA E OS DEZ MANDAMENTOS
Na tradição judaico-cristã, a Bíblia Hebraica já contém elementos que condenam a murmuração, isto é, o hábito de reclamar injustamente contra Deus ou contra os outros. O povo de Israel, durante o Êxodo, por exemplo, foi várias vezes advertido por suas queixas constantes no deserto. Embora os Dez Mandamentos não citem explicitamente a reclamação, as prescrições contra o falso testemunho e a cobiça sugerem a necessidade de controlar a língua e a insatisfação interior. A reclamação, nesse contexto, era vista como um sinal de falta de confiança na Providência divina e nas alianças estabelecidas. Não se tratava apenas de criticar, mas de um sintoma de ingratidão e desconfiança — elementos que corroíam a harmonia entre Deus e Seu povo.
OS EVANGELHOS: JESUS E A PALAVRA EDIFICANTE
Nos Evangelhos, o ensinamento de Jesus enfatiza o amor ao próximo, a caridade, a misericórdia e a retidão do coração. Embora Cristo não dedique um sermão especificamente à “reclamação”, suas orientações contra o julgamento apressado do próximo, contra a hipocrisia e a maledicência (falar mal do outro pelas costas), apontam para um ideal de vida pautado na compreensão e no serviço. Ao invés de reclamar do comportamento alheio, o cristão é chamado a agir: a perdoar, a corrigir com mansidão e a ser exemplo. A falta de ação que acompanha a reclamação — o que hoje chamamos de “paralisia da crítica” — é o oposto do que Jesus prega: para Ele, diante do mal, não basta murmurar; é necessário o exercício concreto do bem.
PECADOS CAPITAIS, VIRTUDES TEOLOGAIS E FRUTOS DO ESPÍRITO
Na tradição da Igreja, os chamados Pecados Capitais — sobretudo a ira e a inveja — frequentemente alimentam a tendência a reclamar, já que o indivíduo irado ou invejoso inclina-se a apontar falhas e a buscar defeitos nos outros. Por outro lado, as Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade) e os Frutos do Espírito Santo (como bondade, paciência e mansidão) contrastam diretamente com a atitude de crítica constante. Aqui, a reclamação é entendida como um hábito que nasce de um interior desordenado, carente de humildade e de confiança. Santo Agostinho, São Bento e São Francisco de Sales, entre outros, ao longo dos séculos, alertaram contra a murmuração e a maledicência, recomendando o silêncio prudente, a moderação e, acima de tudo, o esforço prático para melhorar a si mesmo antes de apontar o dedo ao outro.
OS SANTOS E A VIDA COMUNITÁRIA: DA MURMURAÇÃO AO AMOR FRATERNO
A vida em comunidade, seja nos mosteiros beneditinos do século VI ou nas ordens mendicantes da Idade Média, enfrentava o desafio da murmuração interna. São Bento, em sua Regra, condena o “murmúrio” pois percebe que reclamar constantemente do outro não apenas enfraquece os laços fraternos, mas também impede o crescimento espiritual. A crítica estéril, sem propósito e sem proposta de melhoria, envenena o ambiente e paralisa o progresso. O mesmo vale para outros santos que, ao longo dos séculos, indicaram que, se algo nos incomoda no próximo, a atitude adequada não é a crítica incessante, mas a correção fraterna, a oração e, se necessário, a mudança pessoal.
A MODERNIDADE, A SOCIOLOGIA E A PSICOLOGIA
Com o Iluminismo e a crescente secularização, o foco se desloca do pecado e da virtude para o funcionamento da sociedade e da psique humana. O ato de reclamar passa a ser estudado pela sociologia e pela psicologia a partir de outros ângulos. Pesquisas contemporâneas em psicologia social e cognitiva demonstram o viés da negatividade: o cérebro humano presta mais atenção a falhas, ameaças e problemas. A reclamação pode funcionar como uma válvula de escape, mas quando se torna crônica, tende a corroer relações e a saúde mental do próprio indivíduo. Em vez de uma falta de virtude, a reclamação excessiva hoje pode ser interpretada como um sintoma de insatisfação pessoal, baixa autoestima ou mesmo um estilo de comunicação aprendido.
A SOCIOLOGIA
Por sua vez, a sociologia vê na reclamação uma expressão de insatisfação com a ordem social, política ou econômica. Mas, sem a devida mobilização para a transformação, a crítica torna-se inócua. O filósofo contemporâneo Zygmunt Bauman, por exemplo, ao abordar a “modernidade líquida”, sugere que vivemos num mundo de insatisfações constantes, porém raramente acompanhadas de ações estruturais. Assim, o ato de reclamar sem agir reflete a precariedade dos vínculos, a falta de projetos comuns e a ausência de comprometimento.
DO SAGRADO AO SECULAR, DA FALTA DE VIRTUDE À FALTA DE AÇÃO
A linha do tempo do fenômeno da reclamação mostra uma mudança de perspectiva: o que antes era compreendido em termos morais e espirituais (murmuração, falta de fé, falta de caridade) hoje é muitas vezes analisado em termos psicológicos (negatividade, projeção, ansiedade) e sociológicos (crítica social, ressentimento coletivo). Ainda assim, o denominador comum persiste: a reclamação constante, desprovida de um esforço concreto para melhorar a situação ou a si mesmo, é vista como um entrave, seja ao progresso moral e espiritual ou ao bem-estar individual e coletivo.
A “falta de ação”, que se configura como a segunda face do problema, conecta o passado ao presente. Ontem, eram os santos a nos lembrar da necessidade de viver as virtudes; hoje, são os psicólogos e sociólogos a salientar que apenas reclamar não gera soluções nem crescimento. A caridade, a empatia, a responsabilidade individual, a cooperação mútua e o empenho em agir são antídotos, seja no monastério medieval ou na empresa do século XXI.
CONCLUSÃO
Da Bíblia aos dias atuais, a reclamação sem ação percorreu um longo caminho. O que antigamente era descrito como murmuração — um pecado contra a confiança em Deus e o amor ao próximo — hoje é visto como um hábito tóxico que impacta relações humanas, produtividade e saúde mental. Apesar das transformações históricas, o conselho permanece similar: é preciso equilibrar a crítica com a capacidade de construção, substituindo a reclamação estéril por iniciativas concretas. A mensagem é clara: a humanidade sempre soube que, se a palavra é poderosa, o agir transformador é indispensável.
Por Alexandre Costa Lopes